Início do o ano passado resolvi realizar um antigo sonho . Fazer uma formação como chefe de cozinha . As alternativas estavam a mão . Fiz matrícula em um curso da escola onde ministro aulas de gestão em gastronomia , a Wilma Kowesi . Mesmo com todos os narizes que foram se torcendo quando eu anunciava a minha decisão e as inúmeras falas desencorajadoras do tipo – Mas para que ? Você já sabe cozinhar! - insisti na realização deste desejo pessoal . Um pouco da minha teimosia traz alguma vantagem . Uns chamam de persistência . Gosto da palavra teimosia , não me ofende .
Meu curso e 2011 acabaram com a certeza que eu acumulei bastante conhecimento teórico durante minha vida mas que estou distante de um cozinheiro profissional . O desafio continua . Para melhorar minha cozinha terei que trabalhar muito . Costumo chegar aos bons resultados por aproximação . Não sou do tipo que sai fazendo perfeito da primeira vez , mas também não sou incauto . Antes de fazer me preparo . Leio , pesquiso um pouco . Depois começo a fazer , estudo mais um pouco, disfruto minha experiência e escuto minhas reações . Enfim a analiso o resultado . Assim , me engajo num processo de aperfeiçoamento e melhoria até chegar a um resultado satisfatório para mim . É no processo que misturo minhas emoções , o sal deste banquete .
A Chefe Mara Salles nos conduziu pela cozinha brasileira .Suas origens , preparos . Diferentes farinhas , produtores locais , mangaritos e farinhas ovinha . A Mandioca na veia , a comida rusticamente sofisticada , o leite do coco extraído nas coxas , dendês e azeites , pimentas de cheiro e de pegar . Em uma de suas aulas , ela chegou com um caldeirão de barro lacrado com uma coisa branca que não consegui identificar inicialmente . Os caldeirões são uma paixão antiga . Me lembram caldos restauradores , comida para muitos , comida de juntar gente .
Não demorou muito para desvendarmos o mistério . Rapidamente aprendemos como montar o Barreado , comida tradicional do sul , origem brasileira-açoriana . Eram belos pedaços de coxão duro vermelhos de frescor , que ela cortou em nacos grandes e iguais e arrumou em outro caldeirão de barro ( feito lá no Espírito Santo ) e forrado com fina fatias de bacon para que a carne não grudasse. Muito tempero , um pouco de vinagre e óleo e um pouco de água para formar o líquido do cozimento . Era isso . Bem , quase isso . Faltava fazer a massa de farinha de mandioca e água que foi usada para lacrar a panela , hermeticamente , antes de colocá-la no fogo baixo por 16 horas para cozinhar . No dia da nossa aula o caldeirão fechado trazia o barreado pronto .
Não acredito em programa de culinária na TV quando as coisas aparecem prontas sem mostrar o processo . Logo eu , que professo que as coisas acontecem no processo de aperfeiçoamento , perder o processo ? Não posso , não podia e continuarei não aceitando suprimir o processo .
Pois bem , a Mara abriu o caldeirão e serviu um pedaço de carne desfiando , regada com um caldo perfumado e um pouco de farinha de copioba , da boa . Estava uma delícia o barreado que ela trouxe pronto . Mas saí da aula inconformado . Precisava passar pelo processo .
Fiquei matutando um tempo , não conseguia pensar em ficar 16 horas controlando um caldeirão fechado sem ver ou sentir o cheiro da comida cozinhando lá dentro . Primeiro por que sou curioso demais , depois porque no dia a dia , 16 horas em casa , só se estiver doente . Quando faria meu barreado ?
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O caldeirão , a história , a aula , meu ano , tudo podia estar resumido em fazer o meu próprio Barreado . Uma síntese de 2011, um teste de meus conhecimentos apreendidos , a possibilidade de vivenciar o processo , ter a paciência e o cuidado de vigiar uma panela e um fogo por 16 horas .
De repente nada me pareceu mais simbólico que fazer isso como a minha comida da passagem do ano . Mas eu não estaria só e todos teriam que partilhar meu Barreado comigo . Não perguntei nem expliquei , inclui o Barreado no cardápio da praia , comprei a panela , pedi ao Wladi que comprasse os ingredientes e impingi minha simbologia a todos que foram comemorar a passagem do ano comigo .
Fazer o barreado em Ubatuba foi uma obra de muitas mãos , a turma colaborou muito com a montagem do caldeirão e o Barreado ganhou novas nuances , palpites , temperos . Deixou de ser só meu e passou a ser de todos . Insisti e coloquei o cominho , fiz a massa para lacrar e , dia 31 as oito da tarde , quando a claridade estava acabando coloquei o barreado no fogo sob uma chapa de ferro, com receio de não conseguir controlar o fogo e assim colocar tudo a perder .
Controlei o fogo por 16 horas . Durante a madrugada acordei com sede ainda meio embriagado e me lembrei de verificar o caldeirão . Tudo correu bem. A princípio parecia que a panela não esquentava e nada acontecia . Depois fui me acalmando e aceitando o cozimento lento . Colocava a mão no barro e sentia um borbulhar interno . A massa do lacre ressecou e fiquei com medo que estourasse. Aumentei um pouco nos pontos mais frágeis , umideci o lacre algumas vezes , e até a hora do almoço nada escapou de dentro do meu caldeirão capixaba.
Eram seis da tarde quando fomos almoçar e o Barreado já fazia parte da turma , mesmo sem saberem todo o seu significado para mim . Estavam todos ansiosos pelo resultado . E olha que o Edy , um dos convidados , ƒaz um barreado maravilhoso .
Não estava ligando tanto para ter o resultado perfeito , pois sabia que este era o primeiro que eu fazia . Mas não queria decepcionar ninguém. O vapor perfumado que saiu da panela assim que abri mostrava problemas , um pouco de acidez em excesso . Depois de sentir o cheiro pude olhar o resultado . O caldo estava muito claro , os tomates foram poucos e não estavam no ponto ? Experimentei um naco da carne , não desfiava como na aula . Controlei demais o calor, deveria ter tirado da chapa por algumas horas ?
Mas mesmo assim todos se serviram de barreado no fogão , comeram com farinha de mandioca e uma pimenta caseira muito perfumada e que pega também . Cheguei atéa escutar alguns Hums .
Ás vezes parece que vivo um rascunho , sempre três ou quatro tempos até que ache o resultado satisfatório . Para um perfeccionista sempre há o que melhorar . Um perfeccionista evoluído , como eu , aceita até escrever sobre seu erro . Brincadeiras de lado ,espero poder fazer meu barreado mais vezes e depois da quarta ou quinta vez chegar perto do barreado da Mara Salles .
Qual será o símbolo de 2012 ?